Eu sempre gostei de desenhar. Era, e continua sendo, um passatempo fabuloso que me ajudou e ajuda muito a lidar com ansiedade e o estresse do dia a dia.
Quando começo a desenhar faço um esboço bem leve com o lápis grafite para ter uma ideia do panorama. Vou definindo o contorno geral, as áreas de sombra e luz e seus relevos. Nessa hora, quem não entende nada de desenho, geralmente enxerga uma figura complexa, difícil de identificar, mas a imagem está lá, cravada na minha mente, pedindo para tomar forma.
Só então deixo o grafite de lado e sigo com a tinta nanquim. E como não se pode errar com a nanquim, todo cuidado é pouco. Então, para não ter de recomeçar todo o trabalho, é preciso minimizar erros.
Faço isso seguindo uma certa lógica: os primeiros pontos à tinta seguem o contorno geral do que esbocei que permitem que sobre eles sejam acrescidas camadas, detalhes, pontos e mais pontos. E quando digo ponto, é ponto mesmo.
Sou apaixonado pelo pontilhismo, técnica de desenho em que a figura é feita apenas com pontos minúsculos, quanto menores melhor, o que exige uma paciência de Jó e demanda muito tempo. Às vezes levo dez, doze horas ou mais em um único papel tamanho A4, mas o tempo pouco importa já que funciona como uma catarse para mim.
Durante esse período vou dando forma a figura que vislumbro. Por ora focando em uma área específica, ora afastando meu olhar para compreender como aquela determinada parte se encaixa no todo. E vou fazendo isso considerando áreas de sombra e luz, acrescentando camadas cada vez mais próximas de pontos para criar texturas e diferenciar relevo.
Enquanto faço isso, passo o foco no micro ajustando a vista para o macro, vou compreendendo as relações entre o todo e as partes, e quando me dou conta, foram horas que mal senti passar.
Foi em um momento como estes que me dei conta do quanto o ato de desenhar e o mindset da complexidade são afins.
Três similaridades iluminaram minha cuca como um insight vindo dos céus:
Em ambas é preciso traduzir uma imagem nublada, cheia de incerteza quanto ao resultado, em algo que seja compreensível e reconhecido, por isso, esboçar uma figura que ajude a compreender contornos e nuances, limites e relações é o ponta pé inicial;
Nestas duas formas de agir é preciso identificar áreas e as relações que possuem entre si, só assim o desenho não fica parecendo um Frankenstein retalhado e pode apresentar interações suaves que tornam belo o trabalho final;
Sempre é preciso alternar entre um ponto focal micro e um macro, só assim se entende e se aprende sobre o que deve ser feito para que haja harmonia no todo.
E isso não é balela nem papo para texto de blog hein. Estas três características são o core de qualquer desenho e de qualquer tratativa para a complexidade. Isto me levou a compreender que ambas são um exercício de aprendizado constante.
Porém, há uma quarta similaridade que me chamou mais a atenção que qualquer outra, não há quase nenhuma margem para erros.
E isso pode até fazer você questionar: como assim quase não há margem para erros? E eu vou te responder que realmente não há.
Quando se usa nanquim, não há como apagar o ponto de tinta impresso, da mesma forma que na complexidade, uma ação tem efeito imediato em canais de interação que desconhecemos e que não controlamos, portanto, não se pode simplesmente apagar, deletar, ignorar.
Então. o que fazer caso algo saia errado? A resposta é simples, passos curtos e alternância de visão (a terceira das similaridades que apontei a apouco).”
E quando falo em passos curtos, falo em fazer o mínimo necessário com o máximo de segurança. Falo em conflitar este micro passo com a visão macro para saber se tudo está em conformidade e harmonia, pois, tanto no ato de desenhar quanto no lidar complexo, a busca pela harmonia vale mais que a própria perfeição.
Esta postura nada tem a ver com microgerenciamento. Não se trata de controlar cada pequeno detalhe e cada mínimo aspecto, em ambos, não é o micro ou o macro que definem o todo, mas a harmonia do conjunto que define p resultado e a qualidade da obra. E esta harmonia se mantem e se percebe caso se foque em um ou em outro. É por isso que se deve sempre pensar de forma relacional e compreender contextos, muito mais que em especificidades.
É a busca pela harmonia que te fez respeitar cada parte em si, que te ajuda a trabalhar em prol do bem estar de todas as relações, e que te faz reconhecer que só há ganho quando o todo está em paz.”
A harmonia do desenhar e do lidar com a complexidade primam pela equidade, pelo equilíbrio, pelo respeito e pela conexão. E estes efeitos só se alcançam se aquela confusão inicial de esboços aparentemente mal-ajambrados funcionarem como fio condutor para que as conexões se estabeleçam da melhor forma possível.
As partes só ganham, quando o todo ganha, e vice-versa.
A arte e a complexidade também me permitiram aprender muito sobre resiliência. Sabe o motivo? Depois de um simples ponto de nanquim eu não podia simplesmente usar uma borracha, mas era obrigado a aprender com aquele ponto e achar uma forma, muitas vezes criativa, de transformar o limão em limonada e continuar com o trabalho que já havia sido feito.
Por fim, se já entendia que a complexidade é um mindset em seu sentido mais literal, uma forma de ver a vida em si, agora a aceito e a vejo muito mais integrada a minha realidade. Tudo graças a milhares de pontos desconexos e sua incrível capacidade que me permitem criar e recriar realidades.